É POSSÍVEL ACREDITAR NO FIM DA CORRUPÇÃO?

Por: Aloísio Freire¹

A corrupção pode ser analisada a partir de várias perspectivas, destacando-se aqui a da filosofia e a da política criminal.

Do ponto de vista filosófico é impossível ser ou estar corrupto, posto que corrupção não é essência (ser) nem estado (estar).

Corrupção significa a própria transição, o processo de ruptura. Ruptura, no nosso objeto de estudo, do tecido social.

Explico: há uma ética que orienta nossas ações. A ação dirigida à preservação do tecido social, das regras de conduta, é uma ação ética.
Por vários motivos (em geral para facilitar ganhos, ascensão social, manutenção do poder político ou econômico, mero prazer egoístico…) indivíduos praticam ações dirigidas ao próprio benefício em detrimento da coletividade, donde surge sua responsabilidade moral e jurídica.
Assim, afirmam Clóvis de Barros Filho e Sérgio Praça (2014, p. 24) que:

“Toda relação de corrupção é uma questão ética, porque se objetiva na adoção, por parte de duas ou mais pessoas, de um procedimento que atende aos seus próprios interesses, masatenta
contra a saúde do tecido social e agride princípios básicos de convivência. Mesmo fazendo parte do cotidiano de todos, a corrupção é discutida como prerrogativa de alguns,apresentada em relatos de grande visibilidade.”

Exemplo: quando prefeito e construtor se unem para fraudar a licitação para construção de um posto de saúde, de forma a poderem superfaturar a obra, em detrimento do próprio bem de uso comum (que, se funcionar, será com materiais de baixa qualidade, más condições de instalação etc.), verificamos duas pessoas que se uniram para frustrar aquilo que deveriam estar comprometidos: o interesse público.

O problema é que os indivíduos que praticam atos de corrupção (que para o sucesso de sua empreitada têm de manter seus atos nas sombras, longe de qualquer suspeitas) frequentemente obtém sucesso.

Se desvelados os atos de corrupção, eles podem se valer do discurso pautado na má-fé: “nesse meio é impossível não praticar corrupção” ou “o sistema é que é corrupto, não eu”. Ou seja, creditam um problema que é moral a fatores externos.

A ousadia leva ainda à busca pela legitimidade da corrupção, vejam…

A moral, no entanto, é o único freio à prática da corrupção. Moral que nada mais é do que o conjunto de princípios que nos inibem de praticar atos que atentem contra a ética, ainda que não estejamos sendo vigiados ou que haja a certeza da impunidade.

“A moral é um conjunto de princípios que livremente cada um de nós decide respeitar. Orbital de normas e condutas que nos impomos por deliberação nossa, que respeitaríamos mesmo que não houvesse ninguém nos vigiando. Mesmo que fôssemos invisíveis. Ou invencíveis. Supõe o olhar do eu sobre a própria vida. Suas atividades, suas condutas, seus hábitos. Objetiva-se em decisões sobre si mesmo. Todos sabemos que o eu não se permite buscar o prazeroso, o conveniente, o agradável a todo momento e de qualquer jeito. O eu se impõe protocolos. E o faz em decisão reservada, sem o constrangimento do olhar punitivo e fiscalizador do outro.” (BARROS FILHO e PRAÇA, 2014, p. 53-54).

Portanto, do ponto de vista filosófico, a corrupção somente terá fim pela liberdade decisória de cada um.

É possível que em qualquer parte do mundo, ou em qualquer parte do sua cidade, não restem ao menos duas pessoas prontas a obterem vantagem em detrimento da coletividade?

Do ponto de vista da política criminal, nossa opinião é a de que não há possibilidade de combate EFETIVO da corrupção pela mera aplicação de leis penais.

A História tem demonstrado que o papel do Direito Penal no combate aos crimes multimilionários de corrupção tem efeito meramente simbólico. A ameaça de prisão é insuficiente para inibir a prática do crime. E as penas criminais impostas não impedem a reiteração delitiva.

E não! Não precisamos de leis penais mais duras. Precisamos é parar com essa “tara pela cadeia” e concentrar nossos esforços em outros ramos do Direito que têm se mostrado mais eficientes, em termos de prevenção e punição.

Motivo? A corrupção é uma atividade extremamente lucrativa para “corruptos” e “corruptores”.

“Professores da Universidade de Hong Kong examinaram 166 casos notórios de corrupção desde 1971, compreendendo pagamentos de propina feitos em 52 países por empresas listadas em 20 mercados de ações diferentes. Os pagamentos irregulares geraram um retorno de 10 a 11 vezes sobre o valor da propina paga para vencer um contrato, o que foi medido pelo salto no valor de mercado quando o contrato era ganho. O Departamento de Justiça dos EUA encontrou um grau semelhantemente alto de retorno nos casos que ajuizou”. (OLIVEIRA, apud The Economist, 2013, p. 243).

Devemos concentrar nossos esforços em aprimorar os instrumentos fornecidos por outros ramos do Direito que têm maior foco nos valores movimentados, bem como em formas de prevenção organizacional da corrupção, como Direito Administrativo ou Civil. Apenas esses ramos do Direito têm instrumentos verdadeiramente nocivos à corrupção.

Junte-se aí a efetiva implementação e efetivação de programas de integridade.

Ana Carolina Carlos de Oliveira, ao analisar o “Caso Siemens”, esquema de corrupção da ordem de 1,3 bilhões de euros descoberto em 2006, demonstra como a sanção da empresa e dos envolvidos só foi eficiente pelo uso de institutos não penais.

Em alguns casos (Michael Christoforakos), enquanto a pena criminal pela prática do crime de abuso de confiança foi da ordem de 09 (nove) meses de pena restritiva de direitos, a sanção administrativa chegou ao montante de 350.000 euros (o que levou a retirada da acusação por corrupção); já o acordo civil foi de 1,2 milhão de euros.

Em outro caso, a Siemens foi condenada por evasão fiscal e corrupção a pagar o montante de 201 milhões de euros, sendo 200 milhões de multa administrativa e um milhão de multa penal. Diante do pagamento da multa administrativa, as investigações penais foram suspensas:

“Os múltiplos processos envolvendo a empresa Siemens, como resultado das investigações sobre os escândalos de corrupção apontam (…) que há uma superação substancial das sanções administrativas em relação à penal. No caso de alguns dos ex-administradores, o que verificamos é que as compensações pagas em sede civil são ainda superiores à sanção administrativa.

A previsão das baixas penas restritivas de direitos, a que são condenados alguns poucos acusados, acaba por diluir-se no conjunto das multas impostas. (…) O papel do Direito Penal, assim, é meramente simbólico e demonstra, na esteira do afirmado nos itens anteriores, a superação da sanção administrativa, em termos de gravidade” (OLIVEIRA, 2013, p. 242-243).

No Direito Brasileiro, por exemplo, se compararmos os valores máximos da multa penal com a multa administrativa, o disparate segue a mesma lógica.

[Calma: majorar as sanções penais da corrupção (em sentido estrito) ou criar novos tipos penais, na esteira do que agora propõe o Ministério Público Federal do Brasil, não é uma saída, digamos assim, inteligente. Disso falaremos depois].

Poderiam nos interpelar os mais crédulos no direito penal: “mas uma coisa não anula a outra! Os processos cíveis e administrativos não correm independentemente do criminal?”.

Sim, correm. Mas para quê perder tempo com um Direito (penal) que claramente se mostra menos efetivo, quando podemos concentrar esforços em aplicar ou aperfeiçoar instrumentos mais adequados, existentes em outros ramos?

Vamos buscar formas de dar efetividade à transparência que deve reger as relações do público e do privado, a fim de tirar qualquer possibilidade de negócios feitos na sombra, habitat natural da corrupção?

Vamos aprofundar a discussão sobre Compliance e como ele pode nos ser mais útil na prevenção à corrupção?

Vamos pensar fora da caixinha limitada e endurecida pela soberba e vaidade do direito penal?

¹Advogado Criminalista, Sócio da Maurício Vasconcelos Sociedade de Advogados. Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra, Portugal. Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal. Membro da Associação Internacional de Direito Penal. Pós-graduando em Ciências Políticas. Vice-Presidente e Membro Fundador do Instituto Compliance Bahia.